terça-feira, 4 de agosto de 2009

Desenvolvimento Moral




Ao ler o texto de Jaqueline Picetti, Significações de violência na Escola: Equívocos da compreensão dos processos de desenvolvimento moral na criança?, reportei-me para as minhas experiências que envolviam desenvolvimento moral e foi inevitável relacionar com a minha chegada na Vila Iguaçu, lugar onde fica minha escola. Quero afirmar que é possível uma transformação,por isso quero dividir essa minha experiência para que outros educadores a tenham como referência e que não percam a fé na vida futura. Tudo é possível quando amamos e acreditamos...



Este relato se inicia muito antes de eu conhecer o espaço onde iria exercer minha profissão. Já na prefeitura ao assinar minha nomeação uma funcionária me alertou sem muitos rodeios, de que eu não fazia idéia do lugar onde iria lecionar, fazendo referência à criminalidade. Para não me perder no primeiro dia, resolvi conhecer o local e ao pedir informações sobre a localização (coincidentemente para um vigilante), este se prontificou a me escoltar até a escola, me orientando para jamais andar sozinha naquelas redondezas à noite pois já passava um pouco das dezenove horas. Já fiquei um pouco apreensiva mas nada que ofuscasse o meu contentamento por ter sido chamada no concurso público.
Para falar de moralidade na sala de aula, me reporto ao ano de 2006 quando ingressei na rede municipal do município de Novo Hamburgo. Foi então que aconteceu o “divisor de águas” da minha carreira profissional, onde também fortaleceria a certeza de que meu trabalho realmente vale a pena pois antes trabalhava durante sete anos no “pacato” município de Nova Hartz.
Já no primeiro dia lecionando na Vila Iguaçu em Novo Hamburgo, na Escola Municipal de Ensino Fundamental Vereador Arnaldo Reinhardt, houve uma mudança radical na minha vida. Antes de entrar na sala de aula o sentimento foi horrível; os alunos se empurrando, se chutando e se ofendendo com palavrões já na fila. Logo que adentramos uma menina subiu na classe e disse: - “Sai daqui! Eu quero a minha professora do ano passado! Vou quebrar toda a sala que nem quebrei no ano passado. Esses demonhos (sic) de colegas, quero matar todo mundo!”
Os colegas prontamente reagiram. Um deu um tapa nela e outro a ofendeu também. Tive que segurar um aluno e colocá-lo no seu lugar, e disse: -“Querida. Eu já vi que você está aqui. Tua professora devia ser muito amada mas agora eu estou aqui. Quero primeiro que me conheças antes de não gostar de mim. Não peço que me ames, mas sim que me respeite. Se quiser me amar também aceito.”
Acho que os colegas gostaram da resposta pois a maioria sorria tão bonito para mim que guardo comigo até hoje a lembrança daqueles sorrisos. Como se não bastasse tudo que havia acontecido, a escola não havia providenciado as cópias de que precisava para dar a aula e foi necessário improvisar. Mas como acredito que estava muito bem amparada e intuída, lembrei-me de uma mensagem própria para aquele momento intitulada “Notas Breves” de Francisco Cândido Xavier que eu havia decorado para uma apresentação, trabalhamos aquele texto durante a tarde e elaboramos até um cartaz que ficou exposto meses na sala. Eram palavras providenciais para aquele momento. Tanto que até hoje as utilizo no primeiro dia de aula das novas turmas. Podemos dizer que a primeira crença está ligada a uma concepção de que o ambiente imprime na pessoa o modo de ser e de se comportar, isto é, uma concepção empirista, acreditando que há uma pressão das coisas sobre o espírito e considerando a experiência como algo que se impõe por si mesmo, não havendo necessidade da atividade do sujeito (Piaget, 1987). Vi que apesar da agressividade eles se interessavam em fazer as tarefas, exceto um menino que não havia feito nada e já se aproximava o final da aula. Quando cheguei perto dele, ele levantou jogou seu caderno no lixo dizendo: - “Essa porcaria de caderno!” Eu quis intervir... mas ele logo me interrompeu dizendo: - “Eu não gosto de ti, eu não vou fazer nada contigo, eu gosto da Patrícia, a minha outra professora!” Eu pensei, “de novo não!” Logo deu o sinal e eles saíram todos correndo freneticamente, menos uma menina que veio me dar um beijo e disse: - “Eu gostei de ti e da aula. Não liga pra eles... Eles são assim mesmo!”
Fui para casa chorando, apavorada pois nunca tinha visto tanta agressividade de perto; pensei até que haviam me “presenteado” com aquela turma já que eu era nova na escola. Mas eu não podia recuar, não iria desistir assim de um concurso público. Comecei analisar e refletir sobre todos os aspectos daquela aula e vi que não era nada comigo, não era pessoal. Eram carências, carências de tudo; material, afeto, dignidade, etc. lembrei-me que desde cedo aprendi que na vida só existe dois caminhos: o da dor e o do amor. E foi isso que fiz! Já na aula seguinte iniciei falando sobre esses dois caminhos e que a escolha era de cada um. No caminho do amor, as nossas aulas seriam agradáveis, a aprendizagem seria constante... no caminho da dor as aulas seriam repreensivas , com “castigos”, bilhetes e outras intervenções chatas que fossem necessárias. Mas eu já havia decidido que seria pelo amor (eles não sabiam...). Cada vez que acontecia um ato agressivo, nós conversávamos no geral sobre respeito, direitos e deveres. Com base nesta referência, é possível afirmar que as crianças dos anos iniciais do Ensino Fundamental (7 – 10 anos) estão construindo as noções de justiça, solidariedade, intencionalidade e responsabilidade. Esse processo tem características peculiares que incidem no comportamento. Durante essa construção, é importante que o professor esteja atento aos acontecimentos, pois ele poderá auxiliar as crianças a refletirem sobre as diferentes situações vivenciadas na escola (Jaqueline Picetti).
Como haviam vários segmentos religiosos na sala, falávamos também dos exemplos de Jesus. O nosso cartaz de regras era de apenas uma frase de Jesus: “Faça aos outros somente aquilo que gostar que os outros façam a você! Foi um trabalho de persistência e paciência, mas as mudanças foram acontecendo aos poucos. Eu os tratava com muito carinho e eles me tratavam como uma rainha. Ainda precisavam melhorar com os colegas... Haviam aulas em que eu trabalhava mais moral do que o conteúdo. Comecei a adaptar os textos de Português que trabalhava cuidando para que tivessem uma moral em suas conclusões. Na Matemática, trabalhamos com situações-problemas que tinham relação com a realidade das crianças, para que aprendessem a conhecer quem eram seus colegas. Aos poucos a turma foi se unindo de uma maneira tão notável que eram ótimos os progressos no comportamento e até na aprendizagem. Aquela menina que chamou minha atenção no primeiro dia... que queria quebrar tudo... continuava desferindo palavras de baixo calão, porém se aquietava logo que recebia um abraço. Era como se o abraço fosse o “botão de desliga”. Descobri que tudo que eles queriam era carinho, proteção, amor e oportunidades... coisas básicas que não tinham em casa e eu tentava suprir nessas quatro horas que passávamos juntos. Nos envolvemos de tal forma que progredi junto com a turma no ano seguinte. Foi maravilhoso...
Saímos dos muros da escola, vencemos um Festival Estadual de Esquetes Teatrais e apresentamos na Feira do Livro de Porto Alegre. Agora o nome da vila não aparecia apenas nas páginas policiais; mas nas páginas culturais com ênfase e para orgulho de toda a comunidade. A turma obteve 99% de aprovação e a maioria hoje está na 6ª série. Com freqüência alguns aparecem na escola para falar comigo. Foi uma troca muito grande onde eu ensinei o amor e eles me ensinaram a repensar minha prática valorizando ainda mais os objetivos de ser uma professora para a vida em todos os sentidos.

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